ALEGRE PÁSCOA FLORIDA E DOCE - II


AMENTAR AS ALMAS  II

Amentar as almas como a própria palavra indica, é trazer à mente, embora se lhe atribua também o significado de rezar pelos finados, responsar e exorcizar. Nas nossas terras, amentar as almas revestia-se de dois sentidos: o primeiro consistia em lembrar ao homem que esta vida é passageira, que outra nos espera, e que para vir a ser feliz na outra, que se crê durar para sempre, é necessário cuidar da alma; o segundo era a intenção de sufragar as almas daqueles que já não faziam parte do reino dos vivos.
A Quaresma é, por excelência, tempo de meditação e oração sendo pois nesta quadra litúrgica, na  Semana Santa mais propriamente que essa tradição, vinda até nós de geração em geração, era praticada em várias localidades, como Palhaça, toda a freguesia de Oiã e outros locais. O grupo compunha-se de três ou quatro cantadores, um tocador de saxofone, um de violino, um de trompete e outro que tocava uma campainha; os restantes, em maior ou menor número rezavam. Estes homens, depois de devidamente ensaiados aos serões, juntavam-se à porta do cemitério, das capelas ou das igrejas para aí irem buscar as almas dando assim início ao ritual. Depois seguiam e iam parando junto das  alminhas, nos cruzamentos e à porta das capelas, repetindo sempre os mesmos ritos.
O canto subia no silêncio da noite, dolente e dorido, nas vozes fortes dos homens, acompanhado pelos gemidos do violino e pelo som arrebatador do trompete: a este que soava como alerta e prece, juntava-se a oração cadenciada, intercalada com o toque da campainha e o solo dolente do saxofone.
Tudo isto nunca deixava de causar sobressalto e um certo arrepio a quem, noite alta, era acordado inesperadamente. No aconchego do leito, recordavam-se os defuntos por cujas almas se orava e, à medida que as rezas iam continuando e as pessoas mais despertas se iam consciencializando, o canto passava a transmitir como que uma agradável calma. No intervalo dos cânticos, após o toque da campainha, todos eram convidados a rezar; os moradores da zona juntavam-se ao grupo orando, em suas casas silenciosamente, certos de que a morte pode bater à porta de qualquer um quando menos é esperada.
O grupo percorria assim todo o lugar regressando, por fim, ao cemitério onde ia entregar de novo as almas à sua paz eterna. Ultimamente começou a tornar-se uso, em alguns locais onde o grupo parava, oferecer-se aos seus elementos um copo para “molhar a garganta” embota tal prática não fizesse parte da tradição antiga.
Dos anos mais longínquos apenas ficaram, através da transmissão oral, muito poucos dos versos originais.
Os que restaram vamos aqui registá-los

À porta das almas santas
Bate Deus a toda a hora
As almas lhe perguntaram
Que quereis meu Deus agora?

Quero que deixeis o mundo
e venhais para a glória.

Ó meu Deus quem me lá dera
Cantando com alegria
Na companhia dos anjos
E mais da Virgem Maria.  

O amentar das almas caiu no esquecimento por alguns anos, mas, foi retomado em Malhapão, onde o seu uso era dos mais antigos, por um grupo de homens crentes, com gosto pelo canto e pela música que procuraram seguir os passos dos seus antepassados.
Como na altura não encontrassem ninguém conhecedor da letra antigamente usada, arranjaram quem recriasse uns versos adequados e foi com letra de António Fresco e uma adaptação da música que andava ainda no ouvido de muitos que se reorganizaram.
As quadras cantadas por este último grupo de Malhapão são as que se seguem:

Ó almas que estais dormindo
Nesse sono tão profundo
Acordai e rezai
Às almas do outro mundo.

Se o teu coração sente
Quanto custa o sofrer
Deixa as vaidades do mundo
Lembra-te que hás-de morrer.

A vida que tu adoras
Vai correndo para a morte
E depois a tua alma
Irá ter uma negra morte.

Toca a campainha três vezes, reza-se o Pai Nosso e a Avé Maria.

Rezai mais um Pai Nosso
E também uma Avé Maria
Pelas almas deste Ramo
E de toda a freguesia.

Rezai a Salvé Rainha
À Virgem Nossa Senhora
Pra que na hora da morte
Seja a nossa protectora.

Recorda-te ó bom cristão
Os escravos lançaram à cruz
Uns espinhos tão agudos
Na cabeça de Jesus.

Toca a campainha três vezes, toca o saxofone a solo.

Todavia, volvidos quatro anos, recomeçou de novo o silêncio pois o grupo não mais conseguiu reunir-se; cremos, porém, que em breve irá retomar-se a tradição.


OLIVEIRA DO BAIRRO – MEMÓRIAS DE UM SÉCULO

 Autora:   AIDA VIEGAS 

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