Vivências e Testemunhos - (in SANTO António a Freguesia e o Padroeiro)
A carteira do Fernando
Naquela época tínhamos por hábito almoçar fora, todos os dias, num qualquer dos muitos pequenos restaurantes ou snack-bares, que proliferavam no nosso bairro. Nesse dia fomos precisamente ao que fica mais próximo da nossa casa, por sinal pertencente a um casal natural do concelho de Vagos.
Almoçámos. O meu marido pagou e passado pouco tempo voltámos para casa. O Fernando precisou do seu bilhete de identidade, para copiar o seu número, a fim de preencher um impresso necessário, e ficou preocupadíssimo porque, ao deitar a mão ao bolso, não encontrou a carteira.
A sua primeira reacção foi correr ao bar, ciente que a deixara ali, no balcão, após fazer o pagamento. Certamente os patrões, ou a empregada, a haviam recolhido e lha devolveriam, dado que eram pessoas honestas.
Voltou triste e acabrunhado. Por ali ninguém vira, nem sinais, da sua carteira e afirmavam não lhes parecer fácil alguém deitar-lhe a mão sem eles darem conta, caso ela tivesse ficado em cima do balcão.
Fernando pensou, pensou e lembrou-se que depois de pagar, ainda se tinha sentado à mesa comigo, por mais uns momentos. Por trás de nós, estavam numa outra mesa, dois homens desconhecidos; um deles poderia ter-lhe deitado a mão ao bolso de trás das calças e sacado a carteira.
Também a poderia ter deixado cair, no trajecto do bar até casa. Se isso tivesse sucedido, qualquer passante a poderia ter encontrado, e levado.
Pelo sim, pelo não, vá de telefonar para os bancos a cancelar os cartões de crédito e de débito. Vá de ligar para a polícia, a participar o desaparecimento da carteira e dos documentos.
Eu bem lhe dizia que a procurasse melhor, nos bolsos da camisa e do casaco, pois parecia-me impossível, ela ter desaparecido assim, tão misteriosamente. Virou tudo, procurou por todo o lado e ficou irritadíssimo. Disse-lhe que já tinha rezado o responso a Santo António, e que tinha a certeza de que a carteira apareceria, intacta. Brincou comigo, dizendo tal ser impossível, pois nada lhe tirava da ideia de que fora roubada, e quem rouba uma carteira não a restitui intacta.
Desalentado e aborrecido atirou-se sobre um sofá que estava defronte da televisão, ficando ali parado, sem ver nada, a matutar na ocorrência. Eu sentei-me ao seu lado, tentando animá-lo, não sabendo muito bem de onde viria a solução, mas certa de que ela não tardaria.
Não era nosso hábito, sentarmo-nos neste sofá, senão à noite, quando ligávamos a televisão, para assistir a algum programa. Durante o dia, o televisor nunca era ligado, e se nos sentávamos não era ali. Seria para ler, conversar, ou comer, mas noutros locais da casa. Estranho foi o meu marido ter ali caído desalentado, e eu instalar-me logo ao seu lado, com o fim de o animar. Ali permanecemos uns momentos, mas como ele pouco ligava ao que lhe dizia, visto não acreditar no aparecimento místico da carteira, acabei por me calar, porém permanecendo junto dele. Num relance, visto não ter nada que fazer, olhei para a estante onde estava colocado o televisor e, por baixo do móvel, que ficava mesmo rente ao chão, notei uma sombra. Fui buscar uma vassoura e com o cabo removi o objecto.
Era a carteira do meu marido.
Não sei como foi parar a um lugar onde mal cabia, só sei que se não nos tivéssemos sentado ali sem ter nada para onde olhar, com a televisão desligada, ela poderia ficar lá escondida semanas, pois nem o aspirador lá entrava, razão pela qual aquele espaço era limpo só de vez em quando.
Aida Viegas
A carteira do Fernando
Naquela época tínhamos por hábito almoçar fora, todos os dias, num qualquer dos muitos pequenos restaurantes ou snack-bares, que proliferavam no nosso bairro. Nesse dia fomos precisamente ao que fica mais próximo da nossa casa, por sinal pertencente a um casal natural do concelho de Vagos.
Almoçámos. O meu marido pagou e passado pouco tempo voltámos para casa. O Fernando precisou do seu bilhete de identidade, para copiar o seu número, a fim de preencher um impresso necessário, e ficou preocupadíssimo porque, ao deitar a mão ao bolso, não encontrou a carteira.
A sua primeira reacção foi correr ao bar, ciente que a deixara ali, no balcão, após fazer o pagamento. Certamente os patrões, ou a empregada, a haviam recolhido e lha devolveriam, dado que eram pessoas honestas.
Voltou triste e acabrunhado. Por ali ninguém vira, nem sinais, da sua carteira e afirmavam não lhes parecer fácil alguém deitar-lhe a mão sem eles darem conta, caso ela tivesse ficado em cima do balcão.
Fernando pensou, pensou e lembrou-se que depois de pagar, ainda se tinha sentado à mesa comigo, por mais uns momentos. Por trás de nós, estavam numa outra mesa, dois homens desconhecidos; um deles poderia ter-lhe deitado a mão ao bolso de trás das calças e sacado a carteira.
Também a poderia ter deixado cair, no trajecto do bar até casa. Se isso tivesse sucedido, qualquer passante a poderia ter encontrado, e levado.
Pelo sim, pelo não, vá de telefonar para os bancos a cancelar os cartões de crédito e de débito. Vá de ligar para a polícia, a participar o desaparecimento da carteira e dos documentos.
Eu bem lhe dizia que a procurasse melhor, nos bolsos da camisa e do casaco, pois parecia-me impossível, ela ter desaparecido assim, tão misteriosamente. Virou tudo, procurou por todo o lado e ficou irritadíssimo. Disse-lhe que já tinha rezado o responso a Santo António, e que tinha a certeza de que a carteira apareceria, intacta. Brincou comigo, dizendo tal ser impossível, pois nada lhe tirava da ideia de que fora roubada, e quem rouba uma carteira não a restitui intacta.
Desalentado e aborrecido atirou-se sobre um sofá que estava defronte da televisão, ficando ali parado, sem ver nada, a matutar na ocorrência. Eu sentei-me ao seu lado, tentando animá-lo, não sabendo muito bem de onde viria a solução, mas certa de que ela não tardaria.
Não era nosso hábito, sentarmo-nos neste sofá, senão à noite, quando ligávamos a televisão, para assistir a algum programa. Durante o dia, o televisor nunca era ligado, e se nos sentávamos não era ali. Seria para ler, conversar, ou comer, mas noutros locais da casa. Estranho foi o meu marido ter ali caído desalentado, e eu instalar-me logo ao seu lado, com o fim de o animar. Ali permanecemos uns momentos, mas como ele pouco ligava ao que lhe dizia, visto não acreditar no aparecimento místico da carteira, acabei por me calar, porém permanecendo junto dele. Num relance, visto não ter nada que fazer, olhei para a estante onde estava colocado o televisor e, por baixo do móvel, que ficava mesmo rente ao chão, notei uma sombra. Fui buscar uma vassoura e com o cabo removi o objecto.
Era a carteira do meu marido.
Não sei como foi parar a um lugar onde mal cabia, só sei que se não nos tivéssemos sentado ali sem ter nada para onde olhar, com a televisão desligada, ela poderia ficar lá escondida semanas, pois nem o aspirador lá entrava, razão pela qual aquele espaço era limpo só de vez em quando.
Aida Viegas
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