Vivências e Testemunhos
A asa da pulseira do meu relógio
Decorria o ano de 1956. O meu Pai oferecera-me um relógio de pulso quando terminei, com muito boas notas, o segundo ano do liceu, equivalente ao sexto ano de hoje, uma prenda muito valiosa, útil e desejada, que pouca gente da minha idade possuía.
Eu frequentava o internato de um colégio feminino de freiras, com muitas alunas e exibia cheia de orgulho a prenda do meu pai, por me ter portado bem. Escusado será dizer que nunca mais tirei do pulso o meu relógio novo, a não ser para tomar banho.
Criança alegre e ladina, o recreio era passado no ginásio, se chovia, ou se estava bom tempo, fora, num dos dois pátios de terra batida e saibro, cheio de minúsculas pedrinhas, com uma área aproximada de uns oitocentos metros quadrados, estendendo-se ainda por um passeio, sombreado por uma latada, onde nós corríamos, saltávamos, dançávamos, pulávamos, soltas como cabritos no monte. Foi nessa vasta superfície que eu tive o azar de perder, não o meu relógio, que pelo seu tamanho seria relativamente fácil de encontrar, embora pudesse, por desgraça, ser calcado e destruído, mas sim uma daquelas hastezinhas retracteis que seguravam o corpo do relógio à pulseira, uma pecinha minúscula com pouco mais de um centímetro de comprimento e fininha, fininha. Vim depois a saber que se chamava asa. O relógio, por grande sorte, ficou preso na manga da bata que tinha o punho com elástico.
Quando fui para ver as horas e dei com o meu relógio preso na manga da bata, pensei que era a pessoa com mais sorte do universo, mas ao ver que me faltava uma pecinha, que eu pensava ser uma preciosidade, por fazer parte do presente do meu pai, chorei que me matei. Não sabia que aquela pecita se poderia repor com facilidade, apenas tive a certeza de que o meu precioso relógio estava estragado.
Ora encontrar uma coisa tão minúscula num espaço tão vasto, onde ela se confundia com a terra, era tarefa impossível. Todas as minhas colegas se puseram a procurar afincadamente, de olhos no chão, varrendo todos os recantos, por onde imaginámos ter passado; é óbvio que fora um puxão de uma delas que dera origem à tragédia, mas essa situação era tão habitual que ninguém dava por tal, por isso, saber onde e quando, era impossível.
Terminou o recreio, fomos para as aulas e eu desfeita em lágrimas, com o meu relógio estragado, não pensava noutra coisa.
Foi a meio de uma aula de Francês em que eu não consegui ouvir nem palavra, que me veio à ideia Santo António, e o seu responso. Mal tocou para o final da aula, saí apressada e, num canto sozinha, recolhi-me e com toda a fé de uma miúda daquela idade, concentrei-me a rezar.
Só à Luisinha, a minha melhor amiga, segredei convicta: Quando chegar ao recreio depois do jantar, vou logo encontrar a partezinha do meu relógio que perdi, vais ver.
Como? Se corremos tudo e ninguém a encontrou? Achas que vais chegar lá e dar com ela assim? Quem dera!
Tenho a certeza volvi pois rezei o responso a Santo António, como a minha mãe me ensinou, não me enganei em nadinha, e por isso tenho a certeza de que a vou encontrar.
Está bem, se acreditas em milagres! ...
Vai dar certo. Vais ver. Mas, é segredo, não digas a ninguém.
Quando fomos para o recreio ela veio logo ter comigo. Demos uma voltita e eu disse-lhe:
Não sei porquê mas acho que devo ir ver naquele canto.
Nem para lá fomos. protestou a Luisinha, mas eu parti nessa direcção, a correr.
Depois de uns curtos segundos a olhar o chão, eis que encontrei a minúscula pecinha.
Então sim, alegre e feliz, fui contar a toda agente.
Alguém me lembrou que deveria relatar o sucedido à freira que estava de guarda ao recreio e lá fomos em bando, contar, tim-tim por tim-tim. Também ela ficou admirada mas não deu grande importância ao sucedido.
Certo é que estava passado o testemunho e a partir dali, comecei a ser procurada por todas as colegas, que perdiam algum objecto.
Até hoje, já lá vão muitos anos, nunca o meu Padroeiro me deixou mal, e tenho servido de intermediária a muita gente.
Aida Viegas (in SANTO ANTÒNIO A FREGUESIA E O PADROEIRO)
A asa da pulseira do meu relógio
Decorria o ano de 1956. O meu Pai oferecera-me um relógio de pulso quando terminei, com muito boas notas, o segundo ano do liceu, equivalente ao sexto ano de hoje, uma prenda muito valiosa, útil e desejada, que pouca gente da minha idade possuía.
Eu frequentava o internato de um colégio feminino de freiras, com muitas alunas e exibia cheia de orgulho a prenda do meu pai, por me ter portado bem. Escusado será dizer que nunca mais tirei do pulso o meu relógio novo, a não ser para tomar banho.
Criança alegre e ladina, o recreio era passado no ginásio, se chovia, ou se estava bom tempo, fora, num dos dois pátios de terra batida e saibro, cheio de minúsculas pedrinhas, com uma área aproximada de uns oitocentos metros quadrados, estendendo-se ainda por um passeio, sombreado por uma latada, onde nós corríamos, saltávamos, dançávamos, pulávamos, soltas como cabritos no monte. Foi nessa vasta superfície que eu tive o azar de perder, não o meu relógio, que pelo seu tamanho seria relativamente fácil de encontrar, embora pudesse, por desgraça, ser calcado e destruído, mas sim uma daquelas hastezinhas retracteis que seguravam o corpo do relógio à pulseira, uma pecinha minúscula com pouco mais de um centímetro de comprimento e fininha, fininha. Vim depois a saber que se chamava asa. O relógio, por grande sorte, ficou preso na manga da bata que tinha o punho com elástico.
Quando fui para ver as horas e dei com o meu relógio preso na manga da bata, pensei que era a pessoa com mais sorte do universo, mas ao ver que me faltava uma pecinha, que eu pensava ser uma preciosidade, por fazer parte do presente do meu pai, chorei que me matei. Não sabia que aquela pecita se poderia repor com facilidade, apenas tive a certeza de que o meu precioso relógio estava estragado.
Ora encontrar uma coisa tão minúscula num espaço tão vasto, onde ela se confundia com a terra, era tarefa impossível. Todas as minhas colegas se puseram a procurar afincadamente, de olhos no chão, varrendo todos os recantos, por onde imaginámos ter passado; é óbvio que fora um puxão de uma delas que dera origem à tragédia, mas essa situação era tão habitual que ninguém dava por tal, por isso, saber onde e quando, era impossível.
Terminou o recreio, fomos para as aulas e eu desfeita em lágrimas, com o meu relógio estragado, não pensava noutra coisa.
Foi a meio de uma aula de Francês em que eu não consegui ouvir nem palavra, que me veio à ideia Santo António, e o seu responso. Mal tocou para o final da aula, saí apressada e, num canto sozinha, recolhi-me e com toda a fé de uma miúda daquela idade, concentrei-me a rezar.
Só à Luisinha, a minha melhor amiga, segredei convicta: Quando chegar ao recreio depois do jantar, vou logo encontrar a partezinha do meu relógio que perdi, vais ver.
Como? Se corremos tudo e ninguém a encontrou? Achas que vais chegar lá e dar com ela assim? Quem dera!
Tenho a certeza volvi pois rezei o responso a Santo António, como a minha mãe me ensinou, não me enganei em nadinha, e por isso tenho a certeza de que a vou encontrar.
Está bem, se acreditas em milagres! ...
Vai dar certo. Vais ver. Mas, é segredo, não digas a ninguém.
Quando fomos para o recreio ela veio logo ter comigo. Demos uma voltita e eu disse-lhe:
Não sei porquê mas acho que devo ir ver naquele canto.
Nem para lá fomos. protestou a Luisinha, mas eu parti nessa direcção, a correr.
Depois de uns curtos segundos a olhar o chão, eis que encontrei a minúscula pecinha.
Então sim, alegre e feliz, fui contar a toda agente.
Alguém me lembrou que deveria relatar o sucedido à freira que estava de guarda ao recreio e lá fomos em bando, contar, tim-tim por tim-tim. Também ela ficou admirada mas não deu grande importância ao sucedido.
Certo é que estava passado o testemunho e a partir dali, comecei a ser procurada por todas as colegas, que perdiam algum objecto.
Até hoje, já lá vão muitos anos, nunca o meu Padroeiro me deixou mal, e tenho servido de intermediária a muita gente.
Aida Viegas (in SANTO ANTÒNIO A FREGUESIA E O PADROEIRO)
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