Os sons da minha rua num dia de confinamento
Os sons da minha rua num dia de confinamento
(Hoje chegou a primavera e tudo mudou)
É outono, aquela estação que eu
detestava, por me lembrar o fim do verão e a chegada do inverno, mas que hoje
aprecio. A tarde está serena e calma, com uma temperatura amena.
A azáfama parou por obrigação do covid.
O motivo é mau, porém o resultado excelente.
Fui até à varanda para saborear o final
do dia. Um céu límpido, um ar tão puro que nos deixa a sensação de adocicado. O
vento estava preso lá para os picos do fim do mundo. Tudo tão quieto!
As árvores, tal como artistas de strip,
iam deixando cair as suas últimas roupas, muito, muito devagar. A lua atrevida,
mas mais bonita que nunca desafiava o sol que ainda brilhava no poente.
Que silêncio magnífico se podia
desfrutar! Que placidez! Que sossego!
Ouviu-se ao longe uma criança rir,
depois tagarelar e rir de novo.
Um cão ladrou de uma varanda
pressentindo algo. Era um amigo que pela trela, acompanhado do dono, vinha dar
o seu passeio. Este retribuiu-lhe o cumprimento latindo e pulando de alegria.
Um telemóvel tocou e ficou no ar a conversa saída de uma janela aberta.
O entregador de pisas surgiu, após ser
anunciado pelo brrum brrum da sua mota rasgando o silêncio que, tal como a
areia da praia, com o chegar das ondas, se restabeleceu passado um momento.
Uma rola deixou uma ramaria, seguida de
outra, indo juntas pousar num telhado próximo cantando côcorrocô, côcorrocô. Um
melro, a brilhar de negro, desafiou-me num ramo muito perto de mim com sua voz
sonora. Procurei imitá-lo com um assobio, como costumava fazer quando menina
acompanhava meu pai pelos campos ou pela gândara. Respondeu-me o descarado,
várias vezes e eu fascinada fui-lhe dando troco. Um outro cantor juntou-se a
nós, num tom mais grave e distante, presumivelmente de dentro de uma gaiola e
outro ainda engrossou o coro. Passaram-se uns minutos até eu ficar cansada. Ali
ao lado teve início um palrar de pardais, em revoada.
Surgiu um carro devagar, rua fora
ouvindo-se para além do motor silencioso, um traque-traque, traque-traque com
certa melodia, era o rodar dos pneus ao rebentar as bolinhas dos frutos das
árvores caídos na rua.
Um outro cão ladrou aproximando-se e
ouviu-se a voz do dono ordenando-lhe que se calasse.
As luzes acenderam-se com o sol ainda a
espreitar e eu embora com grande pena recolhi-me para poder registar estes momentos
de paz e tranquilidade e os partilhar convosco.
Aida Viegas
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