Cágarrente
Quando a
Juvelina era garota vivia na sua terra, uma aldeia pitoresca, um homem ao qual,
por fatalidade tinha crescido um enorme bócio, tornando-o uma figura um tanto
grotesca. Era hábito corrente por aquela zona, atribuírem com facilidade
alcunhas às pessoas, das quais dificilmente se livravam, sobretudo se os
visados se agastassem com isso.
Este sujeito,
não se sabe bem porquê, mas talvez pelo seu defeito físico, há muito era
conhecido pelo Cruja, e a criançada
ao vê-lo passar, adorava gritar-lhe:
Lá vai o Cruja! Lá vai o Cruja!...
O homem ia aos arames. Ameaçava os
garotos, e não raro corria atrás deles, vociferando impropérios.
Os adultos, quando a ele se referiam,
também era assim que o apelidavam, porém na sua presença costumavam recatar-se
e tratá-lo pelo nome de baptismo.
Os pais de Juvelina provenientes de
famílias de gente educada e de prestígio, tinham além dela, outra filha mais
nova cerca de dois anos; eram uns lavradores ricos, que empregavam ao seu
serviço vários moços e moças de lavoura.
Aconteceu
que numa tarde de Domingo Juvelina saiu acompanhada por uma das criadas lá de
casa, que a mando da patroa, ia fazer um recado. Como o dia estava lindo, e não
havia trabalho, resolveram prolongar o passeio, dando uma volta pela aldeia. A
certa altura cruzaram-se com o homem do bócio, o qual coitado, não conseguia
passar despercebido por onde quer que andasse.
A
criança ao vê-lo agarrou-se fortemente ao braço da criada, pois aquela figura
assustava-a sempre que a via.
─
O que tens? ─ Perguntou a moça ao sentir a menina encolher-se toda e
enroscar-se nela.
─
É o Cruja! Não vês? ─ Quase gritou,
Juvelina.
─ Não te assustes, ele não faz mal. ─
Disse a criada.
Mas a menina continuando com
medo, pedia:
─ Vamos embora. Tenho medo do Cruja.
─ Cala-te
amiga. Ele não faz mal. Acrescentava a rapariga, afagando a pequenita.
Mas ela chorava.
O homem ouviu, não gostou, como de costume
ficou furioso, e começou a barafustar.
Elas afastaram-se, e ele continuou o seu
caminho resmungando.
Era já tardinha quando felizes regressaram
a casa. Passada cerca de uma hora, estando José, o pai de Juvelina atendendo a
freguesia, no balcão da sua mercearia, entrou por ali dentro, como o vento,
desabrido, o Cruja, gritando e
gesticulando. Vinha acusar a pequenita dizendo que esta lhe havia chamado
nomes.
─ A minha filha não costuma ter essas
atitudes. ─ Replicou José, desagradado e surpreendido. ─ Como é possível ter
acontecido tal coisa? Onde é que encontraste a miúda, parece-me que ela nem
saiu de casa hoje. ─ Afirmava José, desconhecendo o passeio que a criança dera
com a criada, e ainda acrescentou. ─ Mas se ela fez isso, irei castigá-la.
E já chamava a criada para esclarecer o
caso, e a Juvelina para lhe aplicar um correctivo, quando o queixoso, que
continuava a barafustar, a pedido do José, esclareceu melhor o local onde se
haviam encontrado:
─
Foi ali mesmo em frente da porta do “Cágarrente”,
que as encontrei, deveriam ser umas quatro horas. ─ Declarou o homem.
José, que estava de costas, voltou-se
repentinamente, encarou o sujeito com severidade, e pegando na tranca, com que
costumava trancar as janelas da loja, bradou:
─ Seu covarde! Então você tem o
descaramento de se vir queixar de uma criança o ter chamado por um apelido que
toda a gente repete hà anos, e você mesmo, um adulto que deveria ter respeito,
chama “Cágarrente” a um homem cujo
nome é Francisco?! Saia imediatamente da minha vista, e nunca mais aqui ponha
os pés, pois mesmo que a criança tenha errado, já não a irei castigar.
Aida Viegas
(in Histórias de Bolso das Gentes de Aveiro)
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