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Avô e neto



              Teatros e Entremezes

              A tradição dos teatros populares vem de longe pois o povo sempre gostou de representar a vida. Este era um dos entretenimentos da época em que, nem cinema, nem televisão eram sonhados.
              Apresentamos uma peça levada à cena, num palco improvisado, no lugar da Lomba por volta dos anos 1945/46.

             
              Teve como actores:
              O avô – João Caneiro
              O neto – Fernando Martins Anacleto
              O doutor – Manuel Capela
              A criada – Lurdes Catarina
              O polícia – Manuel Regalado.

              Da música não tendo sido encontrado o original, para darmos uma ideia, apresentamos uma versão pelo ouvido de Ricardo Ramos.
              Eram tocadores:
              Manuel Mateus – violino
              Aquiles Capela – bandolim
              Silvino Catarça – violão, da Vigia
              João Narciso – concertina, das Vergas

              Espectadores: Muitos! Entre eles, Maria do Céu e o marido João Cipriano, tendo-nos afirmado este que ainda agora costuma trautear as canções que ali ouviu e aprendeu.

  Reconstituição possível do enredo.
              Avô e neto andavam a pedir de porta em porta. Exaustos de tanto caminhar e cheios de fome, deixaram-se cair na valeta. Próximo estava uma grande casa que parecia de gente abastada.
            O velho, sem forças para se reerguer, volta-se para o neto e diz-lhe cantando:

Levanta-te ó meu netinho
É noite já cai orvalho
Vai bater àquela porta
Ver se nos dão agasalho.

O garoto, levanta-se a custo, e quase se arrasta até junto da porta. Aí chegado estica-se todo até à aldraba que estava acima da fechadura e bate.
Passado algum tempo a porta abre-se e do interior surge, precedida de um enorme cão que ladrava, uma mulher com aspecto de criada ou governanta.
A criança implora comida e um palheiro para pernoitarem.
A mulher olha-os com cara de poucos amigos e entre eles trava-se o seguinte diálogo:

Boa noite minha senhora
O que desejas menino?
Está-se a aproximar a noite
Tenha dó de um peregrino.

Aqui não é nenhum hotel
Nem casa de hospedaria
Aqui mora um bom doutor
De alta categoria.

O menino insiste e a mulher grita com ele para que se vá embora. Ele quase chorando volta-se então para o avô:

Avozinho, tenho fome,
Dê-me pão, ai que horror!
Espera aí ó meu netinho
As ordens desse doutor.

A mulher ouve isto e para se ver livre deles manda chamar o Cabo de Ordens. O garoto que não suporta mais as dores no estômago clama pelo avô.
No meio de tanto barulho chega o Cabo de Ordens pronto a pôr cobro ao desacato e o médico, ao ouvir a confusão, sai de casa e vem ver o que se passa.
Grita o miúdo com medo do Cabo, grita a mulher que os quer dali para fora. O Cabo de Ordens diz ao velho que o acompanhe e vai a pegar-lhe no braço quando o médico se aproxima do portão e fica parado a ouvir, enquanto o catraio implorando diz para o avô, no intuito de dissuadir o cabo de os levar:

Avozinho que tristeza!
Mendigar de terra em terra.
Fiquei sem o meu paizinho
Que morreu na Grande Guerra.

Já não tenho pai nem mãe
Sou filho da orfandade
Tenho hoje por meu amparo
Meu avô já desta idade.

Teu avô já desta idade
E com esta triste sorte!
Que grande infelicidade.
De joelhos peço a morte.

Tenha dó, ó meu senhor,
Deste pobre desgraçado
De dois filhos que eu tinha
Por ambos fui desprezado.

O médico acha estranha a história que ouve e atenta mais nas figuras que tem à sua frente.
O Cabo insiste em os levar, por pressão da criada. O avô tenta explicar que nada de mal haviam feito, apenas pediam pão e um poiso para dormir, mas a crida insiste em que ali não é nenhum hotel e que os quer dali para fora. Esgotados todos os recursos, o velho já resignado diz para o neto que chora cada vez mais:

Filho meu querido filho
Vamos parar à prisão.
Por causa deste sarilho
E ninguém tem compaixão.

O médico resolve intervir e pergunta ao velho quem é e de onde vem.
O velho responde:

Já não tenho pai nem mãe
Nem neste mundo parentes
Sou filho das tristes ervas
Neto das águas correntes.

O médico com ar de intrigado insiste:
Mas quem é você, ó velhote? Diga-me lá o seu nome.
O ancião admirado de o doutor se interessar pela sua vida, responde:
Estou sozinho no mundo com este meu netinho, já não posso trabalhar como antigamente. Veja vossemecê se me ajuda, por alma de quem lá tem, pois o garoto está doente de tanta fome passar. Sou o Jaquim da Antónia, ali das bandas de Mira, vossemecê conhece?
Morreu-me a minha mulher, a Maria Antónia do Rito há um ror de tempo, criei os filhos a custo, um morreu na guerra, outro perdi-o de vista vai para vinte anos Fiquei com esta criança porque a mãe também bateu a bota, com a tuberculose.
O doutor que o ouvia estático e o olhava cada vez com mais ansiedade, mal o deixou terminar. Correu para ele, abraçando-o e com as lágrimas a correr pelo rosto exclamou:
Meu Pai! Meu Pai! Como é possível, termos andado perdidos durante todos estes anos! Tanto que o procurei! Eu sou o João, o seu filho.
A criança olha-os intrigadíssima. O cabo de Ordens fica especado, como que colado ao chão, de boca aberta, e a criada, de mãos na cabeça e olhos arregalados, resmunga coisas ininteligíveis, gesticulando.
O povo eufórico aplaude sem parar.
Já as mãos doíam ao João Cipriano quando a cachopa que estava a seu lado, de nome
Maria do Céu, lhe diz:
É João! Foi lindo, não foi?
Coisa rica. A malta trabalha bem!

Aida Viegas (in Santo António a Freguesia e o Padroeiro)

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