A Gaveta dos Ratos
Meus filhos haviam nascido numa grande cidade, fora de Portugal, onde
passaram os primeiros anos da sua meninice.
As
crianças; três meninas e um rapaz, ao chegarem à aldeia, tudo para elas era novidade,
e aventura. Ali ficava a casa dos avós, onde viemos morar. Adoravam brincar no
quintal da casa, subir às árvores colhendo e comendo frutos, encontrar ninhos
por entre a folhagem, correr com o Fidalgo, cão miúdo e rafeiro, enfim, fazer
mil e uma ciosas, que na cidade não lhes era permitido. Nessa casa, já muito antiga, existia uma velha mercearia, com uma
taberna anexa, que há vários anos fechara as portas ao público, onde se acumulavam trastes à mistura
com toda a sorte de artigos, que lá ficaram após o fecho. Este era o reino onde
as crianças faziam descobertas, imaginavam histórias, se encantavam com toda a
sorte de achados; um mundo de faz de conta, onde elas recriavam cenas e
inventavam histórias, dando largas à sua fantasia.
Deliciavam-se a fazer descobertas, nas estantes, armários e gavetas da
antiga mercearia dos avós, onde encontravam sempre coisas estranhas e novas
para elas; desde colarinhos postiços engomados, da era de mil e novecentos,
aparos de metal, costelos de apanhar
pássaros, piões da breca, medidas de líquidos e de sólidos, moedas da era das
patacas, caixas de botões de todos os tipos e feitios, remotas balanças de
pratos apoiados e suas respectivas colecções de pesos, enfim uma enorme
variedade de objectos curiosos, e delas totalmente desconhecidos, que
constituíam verdadeiros tesouros para a pequenada. Perdê-las e achá-las, era
naquele espaço mágico, encantado, rebuscando entre as prateleiras, as gavetas,
os alçapões, fazendo experiências, jogos e todo o género de brincadeiras.
Quando ficava sem as ouvir por um espaço de tempo mais prolongado, era
certo e sabido que se encontravam na loja, como vulgarmente se designava aquele
espaço, a vasculhar estantes, tulhas, balcões; abrindo caixas, que se mantinham
fechadas há muitos anos, espreitando para dentro de alçapões, revirando gavetas
e prateleiras, de onde tudo poderia surgir, folheando livros, desfolhando
antigas revistas, inspeccionando rimas de papéis remotos.
Existiam várias gavetas ao longo do comprido balcão de atendimento,
entre elas, destacavam-se: a gaveta da marmelada, a das linhas e agulhas, e a
do dinheiro; nesta eram guardados, durante o dia, quando a loja ainda
funcionava, os trocos e o apuro das vendas, juntamente com facturas e os livros
de deve e haver.
Uma tarde andando eu no quintal a apanhar fruta, o Pedrito chegou junto
de mim estafado de tanto correr, de olhos esbugalhados de espanto e medo, a
gritar:
─ Mamã corre, porque a Mana tem ali uma gaveta cheia de ratos.
─ Uma, quê? ─ Perguntei-lhe incrédula?
Uma gaveta cheia
de ratos, Mamã, corre. Vem ver que ela está cheiinha de medo.
Pensando na fantasia de que as crianças são capazes, e supondo, que era
exagero, o que me dizia, ri-me e não fiz muito caso da notícia que o petiz me
trazia com tanto espanto, mas ele insistiu tanto, não me deixando, que tive de
aceder ao seu pedido, largar o que estava a fazer, e segui-lo. E fiz bem. Fiz
bem porque o que o rapaz me disse não era fantasia.
Muitas vezes, aquelas gavetas, eram abertas, pelos pequenos
exploradores, porém desta feita, esperava-os, bem como a mim, uma curiosa
surpresa; um casal de simpáticos ratitos fizera da gaveta a sua casa.
Retalharam todos os papéis que lá se encontravam, fazendo com eles, e com o seu
pelo, um quente e fofo ninho para acolher os seus filhotes. Tudo ali bulia,
aparecendo e desaparecendo minúsculas cabecitas aqui e além, pois os
recém-nascidos em grande número, já começavam a deslocar-se de um canto ao
outro.
Era mesmo uma gaveta cheia de ratos, que na realidade, quando ali
cheguei, a minha filha olhava, com uma cara de espanto e medo, desconhecendo os
perigos que corria, mas feliz por tão insólito achado.
Os pequenos roedores ali haviam definitivamente estabelecido o seu reino.
Aida Viegas (in Histórias de Bolso das Gentes de Aveiro)
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