O Taleigo
Quando chegava o mês de Agosto íamos sempre
para a quinta da avó, em S. Cláudio do Barco, entre as Taipas e o Briteiro,
passar as férias grandes. Havia um caseiro que cuidava daquela quinta, e outro
que estava numa propriedade mais pequenina, sendo este último sapateiro de
profissão, e casado com uma senhora chamada Belém, senhora essa, que tinha sido
criada dos meus avós. Conheceram-se ali no trabalho, apaixonaram-se e casaram,
tendo ido viver numa casinha, que existia nessa dita propriedade. Esses
caseiros eram muito amigos dos meninos da casa, justamente pela Belém ter sido
criada da família. Ora este simpático casal de quem todos nós gostávamos muito,
adoravam contar-nos episódios de almas do outro mundo, que nós ouvíamos
extasiados.
Eu e meus quatro irmãos rapazes, fazíamos
muita chacota dessas histórias, onde sistematicamente aconteciam muitas coisas
estranhas, que quem as contava afirmava terem sido reais; não obstante,
gostávamos de as ouvir. Apesar da nossa relutância em aceitar essa realidade,
como crianças ávidas de emoções, pedíamos sempre com insistência para que
no-las contassem, mesmo que fossem repetidas, e ouvíamos os seus relatos sem
pestanejar, ansiosos, entre o susto e o espanto. Eles afirmavam com convicção,
que, tudo o que nos contavam, tinha na realidade acontecido.
O
Francisco, assim se chamava o sapateiro, disse-nos certo dia:
─ Os meninos vão ouvir hoje uma história
muito interessante que vos contar, mas têm de me prometer que se a Belém
aparecer não se põem a rir. Eu não acredito em almas do outro mundo, a minha
mulher, que é uma medrosa, ela sim, acredita, mas não quer que se saiba, e se
os meninos se rirem ela fica brava comigo. Peço-vos pois que não se riam,
sobretudo se ela aparecer por aqui.
─ Conta Francisco! Conta! Conta lá, que nós
gostamos muito de ouvir, e prometemos que ninguém se vai rir. ─ Insistimos em
coro.
─ Então lá vai. Vou contar, mas olhem, que
se começarem a rir-se, calo-me logo.
Em certa ocasião nós tínhamos milho para
moer, pelo que precisávamos de ir ao moleiro. Pegámos no burrico, pusemos-lhe
os taleigos do milho em cima, e fomos por ali fora. Fomos por ali fora, e como
os meninos sabem, quando vão ver nascer o sol, temos de passar para o lado de
lá do rio Ave. Ora, nós estávamos precisamente a chegar ao rio Ave; era ainda
escuro, mal se via, fomos de madrugada por causa do calor, e para chegar ao
moleiro bem cedinho. A dada altura ouvimos: ─ Querecrrec, recrec, querrec, rec,
rec, rec. A minha mulher ficou logo com os cabelos em pé, e encostada a mim
dizia-me:
─ Ó Francisco, aí que medo! Devem ser as
almas do outro mundo! Ai que medo! Pára aí, não vamos mais para a frente. Pára
aí. Não avances. Pára aí. Olha que elas ainda nos matam o burro, e o burro
custa muito dinheiro!
Querrec-rec, rec-rec.
O barulho não parava.
Para a acalmar, disse-lhe:
─ Ó mulher! Não tenhas medo, isto não tem
nada a ver com almas do outro mundo, é qualquer coisa, talvez bichos na noite.
Não te apoquentes. Temos de seguir o nosso caminho para levar o milho a moer.
Deixa para lá isso. Tem paciência. Vamos embora.
Querrec-rec, rec-rec.
─ Ai, só se fores tu à frente, eu estou
cheiinha de medo.
─ Está bem mulher, eu vou à frente. Fica aí
à espera, que eu vou ver o que é que se passa. Fica aí sossegada.
Ela
ficou, mas de tão estarrecida por estar sozinha, não tendo mais a que se
agarrar, agarrava-se ao burro quase a gritar:
─ Vai, vai espreitar, vai ver o que é,
porque eu não avanço para o rio nem que me paguem. Sei lá se as almas do outro
mundo andam para aí a banhar-se! Deus me livre! Deus me livre! Eu não vou. Não
vou. Não saio daqui.
Eu lá fui. Demorei,
demorei, demorei e a Belém cheia de medo, aflita, dizia para o burro, que se
chamava Mariola:
─ Ai Mariola! Estou cheia de medo e o meu
homem não vem. Se calhar as almas do outro mundo já me deram sumiço ao homem. Ó
Nossa Senhora me acuda! Nossa Senhora me acuda, que não sei o que fazer!
E começou mesmo aos gritos, num enorme
desespero.
Nisto, apareço eu.
─ Ó mulher cala-te lá! Não há almas do
outro mundo, nenhumas. Quais almas do outro mundo, qual porra. Eu bem te digo,
que isso são tudo tretas. Nem tu imaginas o que era! O Alfredo, ali de cima,
também veio trazer milho; por azar desatou-se-lhe um taleigo ao atravessar a
areia. Quando ele deu por isso parou o macho, e, coitado, andou a apanhar pelo
caminho fora, todo o milho que lhe tinha caído, no meio da areia. E agora, está
lá de castigo, com a peneira de arame, a separar o milho da areia. É esse o
barulho das almas do outro mundo, que tu ouves, nada mais. Como vês, és uma
assustadiça. Assustas-te sem motivo.
─ Ai bendito seja Deus! Bendito seja Deus,
que alívio! ─ Exclamava a Belém, erguendo as mãos para o céu.
E o Francisco ria-se, ria-se, ria-se… Aida Viegas (in Histórias de Bolso das Gentes de Aveiro)
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