A Noite da Consoada
Para termos a
sensação de que o mundo está prestes a desabar, que tudo à nossa volta vai
ruir, não é forçoso que a terra trema. Já tive essa experiência.
Meu marido ficou doente com tosse, uma
constipação forte. O médico ia lá a casa vê-lo, de vez em quando auscultava-o,
mas não notava nada de especial, porém o Rogério continuava a tossir. Um dia
começou a ficar com muita falta de ar. O médico quando eu lhe telefonei foi lá
a correr, e dessa vez, ficou preocupado com o estado dele. Disse que ele deveria
estar a fazer uma pneumonia atípica, pois quando o auscultava não parecia ter
pneumonia, mas pelos outros sintomas…mais valia prevenir. Nesse mesmo dia foi
internado no hospital. Após observação e vários exames, durante o decorrer dos
quais, o mal se agravou, os médicos chegaram à conclusão que ele estava numa
situação bastante grave, de modo que, foi entubado e mandado para os cuidados
intensivos. Tudo iria depender da sua reacção durante as setenta e duas horas
seguintes. Não bastando o mal que já o atormentava o meu marido contraiu uma
infecção hospitalar. O caso complicou-se e já lá iam onze dias de internamento
sem ele reagir aos tratamentos.
Quando ia
visitá-lo, fazia-me muita impressão ver todos aqueles tubos abanando, parecendo
que lhe davam ar com uma força enorme, mas ele estava inconsciente!... Eu via
as pessoas entrarem ali, saírem, entrarem outras e saírem; e ele sempre na
mesma e começava a desanimar.
Era
a véspera de Natal, o dia de ceia, como dizemos na nossa terra. Como iria ser a
nossa Consoada sem o pai de família a presidir à mesa, sem a sua alegria, a sua
presença?
Temos três filhos e os rapazes andavam numa
tristeza infinda. Eu procurava animá-los mas as forças começavam já a
faltar-me.
Fui
ver o Rogério mas ele continuava sem dar acordo de si, nem um ligeiro vestígio
de melhoras. Nesse dia fiquei mais abatida ainda que de costume. Resolvi ir
falar com o médico e disse-lhe:
Ó senhor doutor parece-me que não
vejo melhoras nenhumas no meu marido. Explique-me o que realmente se está a
passar, pois ando desesperada, já o não posso ver assim.
Ó minha senhora, se quer que lhe
diga sinceramente, o caso do seu marido é muito delicado, para lhe falar com a
máxima franqueza, dali já não se espera nada, mas nós vamos continuar a tentar
tudo.
Fiquei gelada. Foi nesta ocasião que o
mundo começou a desabar em meu redor. Eu assistia desesperada e impotente.
Voltei a casa totalmente aniquilada. Ainda
por cima era o dia de Ceia!
Pensei nos
meus filhos e para que não ficassem como eu, desesperados, resolvi dizer-lhes,
que nessa tarde não fossem visitar o pai.
Ele não dá por nada, eu já lá
fui, e ele está como de costume.
Mas João, o
filho do meio, não deve ter gostado da minha explicação. Calou-se, e sem
ninguém dar por isso, dirigiu-se ao hospital.
Quando
chegou a casa era já tarde, estava na hora de nos sentarmos à mesa para cear. O
João vinha numa enorme alegria, e mal entrou, gritou para mim:
Mãe, o pai está melhor! O pai está melhor!
É claro que
todos parámos para o ouvir, mas eu tendo ainda nos olhos a tristeza de ver meu
marido vegetando, e nos ouvidos as duras palavras do médico, vaticinando o
pior, respondi:
Está melhor o quê? Homem! Então
ainda há bocado o médico me disse que ele estava tão mal! Que dali não esperava
nada!...
Meu filho exuberante continuou:
Olha! Desta vez reagiu e está melhor, está com a temperatura quase normal.
Os médicos iam-lhe
administrando cocktails de antibióticos diferentes para ver se o doente reagia.
Custou-me a
acreditar, mas fiquei muito contente. Passámos a noite muito mais animados,
pois embora ele não estivesse presente, já havia esperança em nossos corações.
A partir daí
foi sempre a melhorar. Ainda esteve parece-me, mais dois dias nos cuidados
intensivos, mas depois passou para uma enfermaria normal, e lá foi melhorando.
Só que ficou tetraplégico.
Quando Rogério tomou
consciência do seu estado entrou num desalento total.
O médico disse
que ele ia fazer fisioterapia e algum tratamento auxiliar. Mas preveniu-me
também:
Se ao chegar o Verão ele
conseguir dar uns passitos, pensem em se instalar apenas no rés-do-chão da
casa, para não terem de subir e descer escadas.
Mas, qual quê!
Quando chegou o Verão, Rogério já era um homem novo.
O forte e
carinhoso apoio da família, e o regresso a casa deram-lhe novo ânimo.
Andou dois meses
e meio em fisioterapia e foi lentamente melhorando. Começou a recuperar os
movimentos, a mexer-se, e em Abril já conseguia conduzir.
No Verão, graças a Deus, fazia a sua vida normal.
Foi algo de
espectacular!
O filho
desobedecendo à mãe fora perguntar ao médico, e ele logo lhe disse que
finalmente o pai reagira aos medicamentos, e estava melhor. Ao último cocktail
que lhe deram, por sorte reagiu bem.
Eu dissera aos
filhos que não valia a pena ir lá ninguém, pensando que eles ao verem mais uma
vez o pai naquele estado letárgico, passariam a noite ainda mais tristes que de
costume, e tristeza era o que há muito não faltava na família.
Curioso foi, o
João que normalmente era obediente, nessa altura desobedecer à mãe.
Apesar de eu
lhes dizer que o pai estava muito mal, que não havia remédio, que não valia a
pena irem lá visitá-lo, porque a sua reacção não seria nenhuma, João
desobedeceu e foi ver o pai, cheio de apreensão, mas com uma chispa de
esperança, e a chispa incendiou-se. Parece que o instinto o levou lá para
receber a feliz notícia.
E quando veio
trouxe-a.
Aida Viegas
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