Galo do Pescoço Pelado   

 

          Esta é uma das minhas vivências de pequenita; eu era a mais nova de quatro irmãos, tinha uma irmã que era muito ladina, muito, muito, mais do que eu. Tínhamos uma grande casa de lavoura, com muitos animais, fui criada nesse ambiente, um ambiente maravilhoso de que gostava muito, e de que tenho muitas saudades! Muitas saudades! Foi esse ambiente que me deu vivências maravilhosas, para toda a minha vida.

Tínhamos muitas galinhas, vacas, porcos, cães, gatos, burros éguas, tudo isso. Na casa onde vivíamos, a capoeira ficava por trás, num quintal grande.

Todos os anos, a minha avó dizia:

─ Vamos deitar as galinhas.

Deitar as galinhas era por as galinhas no choco, e costumavam chamar-lhe as pitas.

─ Vamos por a pita choca no cesto. ─ Dizia a minha avó, certa de que os netos a seguiam, numa festa.

Num cesto grande, daqueles das vindimas, preparávamos um ninho de palha, que a galinha ajeitava a seu gosto, púnhamos no ninho os ovos, a galinha em cima, e por cima da galinha outro cesto emborcado, e a galinha ali permanecia todo o tempo necessário, para chocar os ovos. No final do tempo os pintainhos começavam a picar o ovo, para poderem nascer.

A minha avó, sempre atenta, tinha então o cuidado de nos chamar de novo:

─ Meninos. Vamos ver, porque a pita já picou um ovo.

E nós íamos, e lá estava o primeiro ovo picado, assim com um bocadinho de casca tirada, e ouvia-se o pintainho piar lá dentro. A minha avó quando ele piava muito, ficava muito aflita, e ajudava com a unhinha dela; retirava assim um bocadinho de casca, para ajudar a nascer o pintainho.

Eles nasciam lindos, amarelinhos, e nós, os netinhos andávamos todos à volta dos pintainhos e da mãe. Por vezes alguns eram carecas, pelados, chamava-se-lhes mais tarde, galinha pelada. As peladas não tinham penas no pescoço.

De uma certa ninhada, que era muito bonita, nasceu um galo pelado, que era um fenómeno, não tinha penas no pescoço, nem em lado nenhum, era pelado no corpo todo, e a mãe picava-o, e os irmãos picavam-no, picavam constantemente o pintainho, era uma coisa louca, e nós tivemos muita pena dele. Então a minha irmã, que adora animais, resolveu retirá-lo da ninhada, e levamo-lo para dentro de casa. Aí dávamos-lhe comida.

Na nossa casa havia a cozinha normal, e a cozinha de cozer ao porco, onde se encontravam aquelas panelas grandes de ferro nas quais se coziam: os nabos, a abóbora, as batatas e as couves. Estas panelas estavam no borralho da cozinha velha, também chamada cozinha de serviço. Foi para aí que levamos o pitito. Ele começou a crescer, a crescer. Lindo! As penas demoraram de facto a crescer, mas devagarinho, foi-se compondo. Deitava-se junto do lume com os gatos, que eram cinco, e estava ali, cocoque coque cocoque coque. Mas sujava tudo, e a minha mãe aborrecia-se com aquilo e queria pô-lo lá fora, porém nós, suplicando, teimávamos para que ele continuasse na cozinha.

A certa altura a minha mãe, já cansada de tanto limpar a sujidade do frangote, insistiu em o por na rua. Nós, as duas, inconformadas, fizemos uma reunião para decidirmos o destino do nosso amigo.

Depois de muito pensar, a minha irmã sugeriu que lhe fizéssemos uma fralda. Mãos ao trabalho, costurámos um saquinho com dois atilhos, que atámos ao rabinho do galucho, e ele lá andava assim, domesticado por completo, pela casa fora. Pulava por todo o lado, e até ia ter connosco à cama se nós deixássemos. E já a mudar de voz, fazia assim: pepepe, pepepe. Era um bicho querido, que nós gostávamos de trazer sempre ao colo.

Não sujou mais nada. As penas começaram a crescer; eram muito bonitas, cor de fogo e douradas. Transformou-se num belo animal, mas continuava dentro de casa, apenas vinha à rua por espaços curtos.

Minha mãe tolerou isto ainda algum tempo, mas o pior foi ele começar a cantar à noite, lá na cozinha, o que era tido como mau agoiro.

A certa altura, já cansada de o ouvir, minha mãe sentenciou:

─ Temos de matar o galo. Ele já não quer ir lá para fora, e nós não o podemos ter aqui sempre, a cantar, a cantar.

O problema é que eu e a minha irmã, assim que a nossa mãe começava a falar nisso, desatávamos, a chorar, e a pedir clemência para o bicho, tão forte era o apego e a amizade que lhe tínhamos!

E nunca deixámos que a sentença se cumprisse.

Certo é que, ninguém teve coragem de matar o galo, o qual continuou connosco, até que, um dia, inevitavelmente, morreu. Mas de velho.
 
                Aida Viegas (in Histórias de Bolso das Gentes de Aveiro)

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue