Repartir     

 

─ Esta é uma história da vida real. Um episódio muito ingénuo mas, com um sabor muito especial.

         Nós éramos quatro irmãos, dois rapazes e duas raparigas. Eu e o meu irmão mais próximo apenas tínhamos treze meses de diferença, e nunca nos demos bem, éramos como o cão e o gato. Fizemos a escola primária em casa dos meus avós. Os meus pais viviam um pouco retirado, não muito, uns cinco ou seis quilómetros, e ao fim do dia, tinham sempre a ternura de nos ir ver a casa dos avós, porque nós estávamos lá, dado que eles estavam muito ocupados durante todo o dia.

Os avós viviam numa grande quinta, onde tínhamos espaço para crescer em liberdade. A minha avó não tinha mais nada que fazer, senão tomar conta de nós, de modo que por lá fomos crescendo.

Como ficávamos sempre muito zangados com nossos pais, por não nos levarem de volta, eles para nos compensarem, presenteavam-nos quase sempre com um mimo qualquer.

Naquele dia o meu pai trouxe uma tablete de chocolate, grande, e disse:

─ Enquanto nós ficamos a tomar o chá, com a avó, vocês podem ir brincar para o quintal; têm aqui esta tablete de chocolate, dividam-na ao meio e comam.

Saímos, eu a saltitar ao lado do meu irmão, que era mais velho, e a pensar que com certeza as coisas não iriam correr lá muito bem e de facto estava certa. Sentámo-nos numas escadas de pedra, que ali existiam. O cãozito de meus avós, o Trigueiro, que andava solto, veio logo sentar-se junto de nós e o meu irmão, disse-me:

       ─ Olha, a tablete está aos quadradinhos; é um quadradinho para ti, um quadradinho para mim e um quadradinho para o nosso cão. Um quadradinho para ti, um para mim, e um quadradinho para o Trigueiro. Como éramos muito amigos do cão, eu ingénua, deixei-me levar na conversa do meu irmão. Acabada a tablete, como não tínhamos mais nada a fazer, voltamos a casa rapidamente.

         Chegámos perto do pai e ele admirado disse:

─ Vocês já cá estão? Já comeram uma tablete, tão grande, tão depressa?

          ─ Eh! Não era assim tão grande pai, disse eu. Porque um quadradinho para mim, um quadradinho para o Afonso, um quadradinho para o Trigueiro…

─ Para o Trigueiro? Vocês deram chocolate ao cão? O cão não come chocolate. O chocolate era para vós, e não para o cão.

          ─ O cão estava a olhar para nós, a ver-nos comer, e eu tive pena e resolvi dar-lhe também, coitado. ─ Esclareceu o meu irmão.

─ E então o cão comeu? ─ Perguntou o meu pai.

         O meu irmão, apesar de manhoso, percebeu que o pai o apanhara, e já desarmado, e meio encabulado confessou:

          ─ Não, ele não comeu, a parte dele, comi-a eu.

         E só então, esta pobrezita inocente, perplexa ao ouvi-lo, se apercebeu do logro em que caíra.

 
                  Aida Viegas (in Histórias das Gentes de Aveiro)

Comentários

Albertina Vaz disse…
Já nessa altura as divisões se faziam por quem mais poder tinha... no fundo, no fundo a história repete-se.

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