Em memória de uma amiga que nos deixou há poucos dias e da qual temos muitas saudades e guardamos belas memórias. Entre elas esta história que registámos no livro "HISTÓRIAS DE BOLSO DAS GENTES DE AVEIRO"




As Favas  

          O meu pai era médico em Lisboa, casado em segundas núpcias, e eu era filha do primeiro casamento. Ele, só esteve casado, quinze meses e passados dois ou três anos, de estar sozinho, casou novamente. Tenho duas irmãs do segundo casamento do meu pai. A minha madrasta era Açoriana, e é, porque ela ainda é viva, tem agora noventa e quatro anos. Foi sempre uma pessoa muito exigente.
O meu pai que estava farto de viver em Lisboa quis ir viver para fora, e fomos morar para a linha do Estoril. Comprou lá um terreno no alto de Caxias, e um belo Domingo… nós às vezes só víamos o meu pai ao Domingo mesmo. Um belo Domingo, ele disse:
─ Meninas, hoje vamos ver o terreno, que o pai vai comprar.
Bom, e lá fomos para o alto de Caxias, ver o terreno.
Foi uma festa. Aquilo era uma quinta que acabou por ser vendida em lotes. O homem que nos mostrou a quinta, era o caseiro, e tinha lá um grandessíssimo faval, eram favas por todo o lado, mas, como é natural, nós não ligámos nada às favas, éramos garotas, eu era a mais velha. A minha madrasta, que gostava muito de favas, ela sim, teceu um grande elogio às favas do homem. Ele não fez mais nada, enfiou-lhe no carro, um enorme saco de favas.
          Chegámos a Lisboa e lá tiraram as favas.
Eu andava no Liceu Francês e as minhas irmãs no Colégio Moderno. Era hábito, eu deixá-las à porta do colégio, porque eram mais pequenas, de seguida atravessava a avenida e ia para o liceu. Ao almoço raramente comíamos lá, quase sempre vínhamos almoçar a casa. Nesse dia chegámos a casa, sentámo-nos, e veio para a mesa uma coisa verde num prato, uma coisa horrorosa. Eu olhei para aquilo, e pensei cá para mim:
─ Que será esta mistela?
Era uma sopa de favas, um puré. Meti aquilo à boca, detestei e pensei:
─ Eu não vou comer isto, não consigo. Mas, não disse nada. Sabe como são os miúdos de dez anos! Eu não me atrevia a comer, e não comia. Ponto final.
Minha madrasta olhou-me severamente e perguntou:
─ Então a menina não come?
─ Não me apetece, respondi.
Voltando-se para a criada, minha madrasta ordenou-lhe:
─ Ó Emília pode tirar o prato à menina, que a menina não lhe apetece.
E eu a ver o que é que vinha a seguir. Vieram favas, não sei de quê, favas inteiras. Olhei para a travessa e pensei:
─ Ai que desgraça! Eu não consigo comer.
Ela pergunta-me:
─ Então a menina não come?
 Respondi de novo:
─ Não me apetece.
Ò Emília retire o prato à menina, que a menina não lhe apetece.
         Só que, em seguida, já me apetecia comer a sobremesa, porém a minha madrasta disse logo: ─ Não teve apetite para o resto, também não tem para a sobremesa. Vai para o liceu sem comer.
 E eu lá fui para o liceu cheia de fome.
Cheguei lá, derramei-me em lágrimas, e as minhas colegas perguntavam:
─ Que te aconteceu? Porque choras?
Eu contei o sucedido, contei a historieta toda, e disse que estava cheia de fome. Foram todas aos bolsos; eram tostões, e dois tostões, e cinco tostões, que naquela altura era muito dinheiro. Arranjei ali logo um “pé-de-meia.”
Era costume, virem de manhã e à tarde, para o liceu, uns tabuleiros enormes de bolas de Berlim recheadas, que naquela altura eram uma maravilha. Já não me lembro quanto custavam, só me recorda que uma colega, a Pinto Machado me disse:
─ Ó menina, tu, compra bolas e come.
É isso mesmo que eu vou fazer, pensei, e se bem pensei, melhor o fiz. Fui-me às bolas e enchi a barriga; e ainda levei uma bola para casa, escondida.
Cheguei a casa, e ao lanche, lá estavam as favas. Não comi, mas aí não me importei, porque ainda estava enfartada de bolas.
Cheguei à noite, ao jantar, tinha as favas de novo à minha espera. Também não me importei muito porque tinha comido muitas bolas, e por sorte ainda tinha uma guardada. Fui fazer os deveres, e lá para as tantas, antes de me deitar, vá de comer a bola.
Ao pequeno-almoço do dia seguinte, puseram-me na frente, as favas. Como é evidente, fui outra vez para o liceu sem comer, mas aí já com bastante fome!
Bem, ao segundo dia já foi um bocado mais difícil arranjarmos dinheiro, eu já gastara quase tudo o que me haviam dado na véspera, mas ainda consegui para umas duas bolitas.
Essa Pinto Machado, que era muito espertalhona, decretou:
─ Ó menina, tu vai ao Monsenhor Sanseur e diz-lhe que precisas de comprar alguma coisa na cantina. Nós lá no liceu comprávamos tudo o que necessitávamos, na cantina, desde os lápis, às borrachas, desde que levássemos a senha, passada por Monsenhor Sanseur.
Na minha inocência perguntei à colega:
─ Então eu vou pedir ao Sanseur senhas para ir comprar bolas?
─ Claro que não, pateta! Tu dizes que precisas de uma senha para ir comprar outra coisa qualquer. Anda daí que eu vou lá contigo.
 E lá fomos, pedir a senha, já nem me lembro para quê. O que é certo é que eu arranjei umas duas ou três senhas.
Às onze horas da manhã, chegaram as bolas, quentinhas que era um regalo, e foi o segundo dia de bolas.
Ao chegar a casa, à hora do almoço, esperavam-me novamente, as favas. Foram três dias seguidos. As favas já tinham bolor, mas ao terceiro dia já não havia dinheiro para bolas nem senhas possíveis.
Aí eu, segundo uma das minhas irmãs ainda hoje conta, enfureci-me de tal maneira, que peguei no prato e atirei-o ao chão, desesperada. Partiu-se o prato e espalhou-se tudo. Tive de limpar em seguida, é claro.
Nesta altura minha madrasta acabou por desistir de me dar favas.
 O episódio tinha durado três dias, porém ainda não estava encerrado, e eu ainda tinha muito para penar.
    De três em três meses vinha a conta da cantina do liceu.
Um belo Domingo pela manhã, ouço o meu pai chamar-me, não pelo diminutivo, pelo qual era costume tratar-me, mas sim pelo nome próprio, o que era sinal certo de perigo eminente.
─ Ó diabo, isto está mau! ─ Pensei de imediato. E de repente veio-me à ideia a história das bolas. Desci, entrei no escritório e dirigindo-me ao meu pai, num tom humilde, perguntei:
─ O pai chamou?
─ Sim, venha cá. A menina faz o favor explica-me, o que é isto, na conta do liceu?
Eram montes de bolas de Berlim, a não sei quanto cada uma.
Aí engasguei-me e comecei logo a choramingar.
Ele, muito calmo, declarou:
─ Não quero que tu chores, quero apenas que me expliques o que é que isto significa.
Sem saber onde me havia de meter, fui contando… Não costumava mentir ao meu pai; ele era um homem compreensivo e muito amigo das filhas.
Esta história marcou-me demasiado, e é por isso que ainda hoje não consigo comer favas.
Ainda esta manhã estando a descascá-las, para o almoço da família, mal lhes peguei, logo me veio à lembrança o maldito episódio, razão porque estou aqui a contar-lho.


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