O LADO FEMININO DA GUERRA DO ULTRAMAR

(Lisboa, 20 de Março de 2013 - Palácio da Independência)
(Intervenção de Aida Viegas)
         
 Foi com muito prazer que participei na obra “A Mulher Portuguesa Na Guerra e nas Forças Armadas”.
          Hoje desloquei-me, expressamente de Aveiro aqui, para dar o meu testemunho como mulher de um combatente, mulher que o acompanhou no local de conflito, na guerra do Ultramar. Começo por declarar que a guerra, para mim, foi e será um dos grandes flagelos da humanidade. Sou contra todas as guerras.
          Penso que se as mulheres estivessem em maior numero nos lugares de decisão não haveria tanta guerra, mas poderei estar enganada.
          A parcela do ultramar português onde vivi a guerra ao lado do meu combatente, do meu herói, foi Angola para onde fui em 1962, sendo que o meu noivo já lá se encontrava desde Agosto de 61. Nessa terra maravilhosa permanecemos até 75, momento em que fomos expulsos por indecente e má figura; má figura, não nossa, é claro, mas sim do governo português.


          Há por aí quem classifique os feitos de um combatente da guerra do Ultramar com palavras depreciativas e, por mais que ele se tenha distinguido nas suas proezas guerreiras, não o considere um herói. Embora possa admitir que alguns tenham cometido actos menos dignos, pois apesar da guerra em si, ser uma atitude indigna do ser humano, não justifica atrocidades. Certo é, que quem é forçado a ir para a guerra terá no mínimo de lutar para se defender a si próprio e à terra por que peleja.
          Não entendo pois porque há quem insista em conferir menos dignidade aos combatentes do Ultramar Português do que aos se bateram noutros cenários ou conquistaram terras aos Mouros.
          No presente o nosso contexto social deve levar-nos a combater não o inimigo no campo de batalha; mas na corrupção, na degradação social, no alcoolismo juvenil, na droga, na fome, nos fogos e em tantos outros males. Para todo este combate é urgente que todos nos mobilizemos.
         
          Por sorte o meu combatente, estava na guerra do Ultramar, para cuidar da vida, e fê-lo com toda a dedicação e empenho. E não só cuidava da vida, dos nossos militares mas por vezes também da dos inimigos, que sendo capturados feridos ou doentes, e não podendo ser assistidos nos hospitais de campanha, eram trazidos para o Hospital Militar de Luanda.
          Jamais esquecerei a alegria que testemunhei quando um dia o meu marido me contou o seguinte:
          ─ “Há dias, estando de serviço, fui fazer a visita aos doentes das enfermarias e dei com um negro muito mal. Tentei falar-lhe mas ele nem sequer deu sinal de me ter ouvido. Perguntei ao enfermeiro o que se passava com o doente, e ele disse-me que o indivíduo era terrorista, tinha sido capturado e estava com tétano. Perguntei-lhe se estava a ser medicado, e ele respondeu-me que sim, mas que já tinha poucas esperanças porque já nem sequer conseguia abrir a boca para se alimentar. Disse-lhe que se o homem estava vivo, tínhamos de continuar a dar-lhe o anti-tetânico de qualquer forma para, a todo o custo, tentar salvá-lo. 
          Passados poucos dias voltei e o homem já comia pela sua mão.
          ― Nem sabes como estou feliz por ele ter melhorado, acrescentou meu marido.

          E eu congratulei-me com ele.

          Era com esta cumplicidade que vivia e sentia a guerra ao lado de um combatente em serviço no Hospital Militar de Luanda, recém inaugurado.
          O meu herói foi mobilizado para a Guiné em Julho de 1961, mas por sorte ou azar, ao ir despedir-se da namorada, no percurso de Vagos a Sever do Vouga, teve um acidente tendo de ficar internado durante uma semana. Este facto impediu-o de ir para a Guiné e deu azo a que seguisse para Angola no mês seguinte.
          A mobilização de um jovem para a guerra do Ultramar era um drama.
          Porém, quando as cartas e os aerogramas começaram a surgir, a situação foi-se desdramatizando. (e foram tantas as missivas e com o papel tão bem aproveitado! … Ora vejam só.)
          O rapaz estava feliz, a servir a Pátria, como o haviam ensinado, a cumprir a sua nobre missão como enfermeiro, minorando o sofrimento dos doentes. E começou desde logo a ficar enfeitiçado por África, já havia bebido a água do Bengo.
          Em 1962, havendo-me já convencido que Angola era uma terra magnífica, vem à Metrópole casar, viagem que fez, num dos aviões da Força Aérea acompanhando doentes evacuados para o Hospital Militar Principal.
          E em Outubro sigo eu para Luanda no último voo da TAP feito num avião a hélice com escala na Guiné Bissau.
          Cheguei a Luanda e, recordo-me bem, fomos directos do aeroporto ao Hospital Militar, o meu marido tinha ali algo a fazer muito urgente (urgência essa que sempre teve prioridade na nossa vida de casados até ao fim da sua comissão de serviço)
          Nessa tarde ainda fui tomar posse como Directora Pedagógica do Colégio dos Antigos Estudantes de Coimbra. Era eu uma jovem professora com vinte anos de idade, e apenas dois anos de serviço.
          Da guerra, eu tinha medo, meu marido não, dizia-me sempre que a guerra não voltaria a Luanda e que lá para o mato, poderia terminar brevemente.
          Ele sabia do que se passava fora de Luanda pelas notícias trazidas por civis e militares e pelos feridos que chegavam ao Hospital Militar.
          Dediquei-me exaustivamente ao ensino durante os três anos em que meu marido esteve ao serviço do exército.
          Da actividade do meu combatente nunca me esquecerei, pois o seu trabalho não tinha horário, e a qualquer a hora, do dia ou da noite, era chamado, o que muitas vezes perturbava o nosso ritmo familiar; porém ele apresentava-se sempre com prontidão e bem disposto.
          Quantas vezes fui com ele fazer serão ajudando-o a preencher impressos na secretaria do Hospital, pois era frequente ser chamado, já fora das horas de serviço, para preparar os processos para embarque de doentes, de avião ou de barco que sairia dentro de poucas horas para Lisboa. Eu escrevia apenas: “Pede deferimento ou Aguarda embarque.” Mas, por estranho que pareça, estava horas a escrever estas frases, porque se repetiam e os impressos eram muitos.
          O tempo passou, e Angola encontrava-se praticamente pacificada quando a revolução nos surpreendeu e alegrou de certo modo. Pensámos que, poderia haver uma transferência gradual de poderes que culminasse numa independência desejada e vantajosa para todos. Porém, em lugar disso, vimo-nos envolvidos numa guerra urbana mais sangrenta do que se possa imaginar, entre os três movimentos de libertação, mas que fustigava também os civis, e infelizmente se prolongou muito para além da nossa partida.
          Aí sim, eu presenciei o nosso exército desmoralizado.
          Como digo no meu livro “Abandonar Angola Um Olhar à Distância” O Nobre Povo, Os Heróis do Mar, encontravam-se numa grande encruzilhada de braços caídos, olhos no chão e o espírito confuso.
          E pese embora todo o sucedido a verdade é que amámos aquelas terras e aquelas gentes razão porque terminei o meu livro, que apenas consegui escrever vinte e cinco anos volvidos, da seguinte forma:
      
“Oh! Terra bendita, que a natureza ornou de ouro e diamantes, revestindo-te as entranhas de lavas ardentes que no âmago do teu seio fecundam teu ventre de riquezas; envolve-te o sol num amplo abraço de paixão abrasadora e a chuva apaga teu fogo intenso revigorando tua alma, a floresta, na imensidão das tuas planuras...
          Quisera alegrar-me com teu povo na alvorada dum provir de ressurgimento e progresso, onde soprassem ventos de mudança e de ventura, mesclados na alegria dos teus batuques e nas máscaras de teus lendários feiticeiros.
          Quisera, Angola! Ver-te crescer e eclodir, brilhar em novos horizontes de esperança onde a paz fosse uma constante da vida e, um risonho futuro uma forte e segura certeza. Que a fome não corroesse tuas entranhas nem a guerra asfixiasse teus sonhos, sufocando-os à nascença.    Choro-te Angola! No sofrimento das tuas crianças, na tristeza de teus jovens amputados por minas traiçoeiras, no desespero de tuas mães, na morte à mingua de tuas gentes, nessa terra bendita onde correm leite e mel.
          Choro-te, ao lembrar tuas belas cidades devastadas, teus vastos campos que se tornaram improdutivos, semeados que estão de minas de morte, em lugar do pão.
          Tu não merecias... o teu povo não merecia...
          Que a semente da paz renasça em teu seio, que cresça, se fortaleça e prospere para que os meninos voltem a sorrir, os homens a criar riqueza e os velhos a abençoar os vindouros.”

                   Aida Viegas
                                        


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