Do livro

"Histórias de Bolso das Gentes de Aveiro"

Entrega da Encomenda de Espinho 

Morava eu num apartamento ali no Bairro do Liceu, num prédio de três andares e no mesmo piso vivia a dona Berta uma senhora muito simpática dos seus setenta anos. Era habitual, no verão, ela ir passar férias com a família numa localidade para os lados de Arouca. Durante o período em que estava ausente, dona Berta costumava deixar comigo as chaves de sua casa para eu lhe regar alguns vasos de plantas que tinha na varanda, e também me pedia para lhe tratar de qualquer assunto urgente que surgisse de improviso, aliás, pode dizer-se, que eu era a guarda do prédio, pois, com a minha sogra acamada, nunca ia de férias, e se saía de casa era sempre por um curto espaço de tempo, pelo que, se por ventura o correio chegasse com qualquer registo, ou encomenda para qualquer dos moradores e os não encontrasse, geralmente era a mim que recorria.
Aconteceu baterem-me à porta uma certa manhã e eu como de costume fui abrir. Deparei-me com um moço de tão boa aparência, que poderia ser meu filho, ou meu sobrinho. O rapaz já havia subido, alguém lhe abrira a porta da rua, encontrando-se ele no segundo andar em frente do meu apartamento.
Muito delicadamente cumprimentou-me e disse-me:
─ Minha senhora tenho estado a tocar na campainhada da senhora dona Berta mas pelos vistos ela não está em casa, e eu trazia aqui, para lhe entregar, uma encomenda que ela fez na fábrica de tapetes em Espinho.
─ Na verdade ela hoje não está. ─ Respondi, não querendo revelar-lhe que a senhora estava de férias, e iria estar ausente ainda muito tempo.
─ Pois é. ─ Acrescentou o rapaz, que carregava um rolo de certa dimensão. ─ O problema é que eu vim propositadamente trazer-lhe isto, é um tapete que ela encomendou, e assim terei de o levar de volta, e a senhora será obrigada a ir a Espinho buscá-lo de propósito.
Em face deste esclarecimento logo me dispus a ficar com a encomenda, e a entregá-la à dona Berta.
─ O pior, ─ acrescentou o moço ─ é que a dona Berta ainda não pagou, e não é tão pouco como isso. Paciência. Terei de levar o tapete de volta. Obrigado, de qualquer maneira, acrescentou delicadamente.
─ E qual é a importância? ─ Perguntei, na intenção de resolver o problema da minha vizinha.
─ Ah! São sete mil e quinhentos escudos. Está a ver! Ainda é bastante.
Na altura ainda era muito dinheiro. Mas eu tinha mais que essa quantia em casa e interiormente dispus-me a pagar e a ficar com a mercadoria, no entanto fui primeiro consultar o meu marido sobre o que devia fazer. Ele, como era seu costume, respondeu-me, que eu é que sabia.
Resolvida a pagar em cheque, por me parecer mais seguro, peguei no livro de cheques e voltei junto do rapaz, confirmando a quantia, para lhe passar o cheque e pedir-lhe o recibo. Ele porém, com a maior cortesia lamentou o facto de não poder receber daquela forma porque o patrão apenas lhe autorizava aceitar cheques de vinte mil escudos para cima, pelo que só poderia receber mesmo em dinheiro. Nem tão pouco trazia recibo, isto para que a cliente não tivesse de pagar imposto, visto ser conhecida do dono da fábrica.
Voltei lá dentro a questionar meu marido sobre o assunto, mas a resposta foi a mesma, resolvesse eu. Eu, é que sabia.
Embora um bocadinho contrafeita, mas decidida a ser prestável à dona Berta, fui buscar o dinheiro e entreguei-o ao rapaz, que me deixou o tapete; afinal era troca por troca, não via nisso grande mal.
Guardei o embrulho, que era bem grande, no hall de minha casa, ao alto, num canto atrás da porta, para dar à vizinha logo que ela aparecesse. O rapaz agradeceu gentilmente e retirou-se desejando-me um bom dia.
Quando passado algum tempo a dona Berta voltou de férias, eu que da minha janela, a vi chegar, corri para a porta do apartamento, e saí para a esperar nas escadas, sorridente, e lhe dar a novidade.
Parece que ainda a estou a ver, no patamar antes de chegar junto de mim, quando eu alegre a informei, que estava comigo a encomenda que ela tinha feito em Espinho e que lhe tinham vindo entregar.
Ela parou, olhou-me muito séria e disse:
─ Minha amiga, presumo que a enganaram. Anda tanto malandro por aí! Eu não fiz encomenda nenhuma em Espinho, aliás se tivesse feito, ter-lhe-ia pedido o favor de ma receber.
Só nesse preciso momento, conclui quanto tinha sido ingénua. O rapazinho era tão simpático! Tão bem-falante! Tão bem vestidinho! Pelo aspecto poderia ser meu filho ou de qualquer das minhas amigas!
A dona Berta passou meses a fio a tentar entregar-me a importância que eu havia dado ao rapaz. Eu porém nunca aceitei. A culpa tinha sido apenas minha.

Quanto ao embrulho, que ali continuava com bom aspecto, é claro, que logo o abrimos; dentro encontrava-se um tapete velho roto e esfarrapado, talvez retirado dalgum tambor do lixo.

                                  Aida Viegas

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